COISAS DA VIDA REAL

                                   Um Beijo Venenoso


          Era uma tarde agradável de um domingo de verão, e divertíamo-nos em torno de uma churrasqueira pública num dos parques da cidade, onde costumeiramente frequentávamos para espairecer e esquecer as agruras da metrópole.
        O único transtorno era, sem dúvida, a indesejável presença de desassossegadas abelhas que insistentemente revoavam entre nós e sobre os nossos alimentos, e que nos deixava temerosos por um ataque brutalmente inesperado.
          – Entendo de apicultura, e garanto que elas não lhes farão mal algum! – disse um transeunte, acalmando-nos.

  Um braseiro fumegante assava nossas carnes sobre labaredas e fagulhas, enquanto um convidativo aroma irradiava-se no ar despertando-nos a ânsia pela degustação, momento em que conduzíamo-nos à ingestão de deliciosos goles de cerveja delicadamente  acompanhados de prazerosas lambidas de beiços. A alegria fixava-se em cada semblante e nossos gestos registravam um imenso grau de contentamento. Éramos, momentaneamente, um grupo festivamente feliz.
          Papo vai e papo vem; uma brincadeira aqui e outra ali, e aquele inesquecível domingo transcorria maravilhoso entre ruidosas gargalhadas, o que nos deferia a mais intensa satisfação. 
                *                                   *                                                                      
          Atendendo aos apelos de minhas netinhas adquiri alguns pirulitos de um vendedor ambulante, e as presenteei, o que foi, deveras, um prato cheio para as esfomeadas abelhas que, às gulas, esqueceram nossas carnes e passaram a assediar incessantemente os doces das crianças.
          - Vô, me dá sua cacunda! – pediu-me uma das netinhas, querendo, dessa forma, se aliviar do cansaço gerado por suas peraltices e correrias.
          – Tá bem meu xodó, monte aqui! - respondi-lhe me abaixando, enquanto ela, com uma das mãozinhas se agarrava ao meu pescoço e com a outra mão desesperadamente protegia o seu dulcíssimo pirulito que involuntariamente o esfregava em minha boca, e muito preocupada repetidamente me pedia:
          – Vô, guarda meu pirulito! Guarda meu pirulito, vô!
          Não tendo alternativa abri minha boca e deixei o doce entrar, mas junto a ele também veio uma abelha que loucamente esfomeada sugava do seu açúcar e tudo foi parar boca adentro.

          Num milésimo de segundo aquele corpo estranho tirou-me todo tipo de ação.
          O dito inseto, alvoroçando-se, parecia ter um volume descomunal e a nada deste mundo ele era comparável, senão, com gigantescos galhos de árvore balançando-se ao vendaval, e tudo isto acontecia em pleno céu da minha boca.
          As asas da abelha riscavam meu palato com movimentos bruscos e coceguentos, ao tempo em que o seu ferrão se encravava profunda e dolorosamente em minha língua, inundando-a de veneno.  Tive a sensação de estar bochechando um dinossauro enfurecido, e em poucos segundos senti minha língua quintuplicar de volume: o que me tirou o poder do tino e da fala.    Eu apenas gesticulava desesperadamente carrancudo, e todos ao meu redor riam sem nada entender. Eles Achavam que meus grunhidos e  rodopios eram gracejos dirigidos às netinhas.
          Instintivamente joguei a criança ao chão e desesperadamente me pus a expulsar a impiedosa invasora, puxando-a com os dedos, até que a retirei. Mas ela deixou-me como dádiva o seu ferrão carregado de veneno e bem introduzido em meu único instrumento de fala.
          As pessoas, que a tudo assistiam, me gozavam dizendo:
          - Queres um espeto com carne assada, uma linguicinha ou uma cerveja gelada? Um pacote de pipoca ou um algodão-doce?
          E eu, gemendo, e sem poder falar, lhes respondia gesticulando com as mãos, como que a dizer: vão tudo pros quintos dos infernos.
          Apagaram as brasas.
          Derramaram os líquidos.
          Deram as carnes para os cães.
          Até o próximo churrasco! – disse alguém, tentando me consolar.
          – Nunca mais – lhe respondi balançando a cabeça, como se estivesse falando. E gemendo de dor fui parar no hospital mais próximo onde: no lugar de espeto me deram agulhas e no lugar de cerveja, me deliciei no soro.


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                                                   Vendedor
        
       1970 cheguei à belíssima Rio de Janeiro.
       Eu sonhava com um futuro promissor tal como sonha um adolescente abobalhado com o seu primeiro beijo.
       Na cidade maravilhosa tive minha primeira experiência de vida como vendedor de Carnet:  carnet ERONTEX
Após um exaustivo treinamento me mandaram para a Ilha do Governador.  Lá a maioria dos moradores era militar, por isso eu acreditava que iria fazer uma grandiosa venda, pois na minha cabeça, eles - os ilhéus-, tinham muito dinheiro e eu seria um grande vendedor da equipe, e, oxalá, o melhor de todos.
Bati palmas na primeira casa que vi e, tal como me treinaram, fiz meu longo discurso sobre o produto Erontex, assim dizendo:

- Minha senhora, a senhora não estaria interessada nos produtos ERONTEX? Temos geladeira, televisões, fogões, bicicletas, lavadoras, colchões, camas, mesas, sofás, vitrais, etc,etc. etc, e a senhora ainda concorre a um valiosíssimo prêmio de um milhão de cruzeiros na TV tupi! já pensou? A senhora compra um carnet e será a próxima felizarda! – eu falava todo lero-lero olhando dentro dos olhos da fulana; tudo tudo na ponta da língua tal como ensaiei frente aos treinadores da empresa.

- Não! Não quero porcaria nenhuma! Me deixe em paz! – me disse a primeira, a segunda, a terceira, a quarta, a quinta, e assim foi embora a metade do dia sem eu vender bulhufas.

         Já era final da tarde quando já me sentia cansado, com as mãos ardendo de tanto bater palmas, e com o tênis konga esquentando nos pés, quando avistei uma luxuosíssima casa com um belo Mustang vermelho, brilhando como o Sol, no meio da garagem. O carrão estava  todo enfeitado. Ele parecia ter sido usado por um casal em núpcias, pois tinham fitas coloridas e inúmeras latas amarradas no seu pára-choques. Não me interessei pela casa e fiz de conta que não a vi, mas o chefe, embravecido, me alertou aos gritos, dizendo:
         - Ei, você ai! Bata palmas naquela casa! Não  devemos deixar  nenhuma delas para traz!
                 E eu, em frente ao casarão,  me questionava: - acho que hoje não  venderei nem o suficiente para salgar o feijão.


          Mas fiz tal como o chefe me ordenou:
          - Ôoo de casa!  Ôoo de casa!
        Bati palmas inúmeras vezes e toquei a campainha abusivamente. Fiz um barulho infernal balançando o portão (eu queria, a qualquer custo, vender pelo menos um carnet: era uma qustão de honra), até que a porta se abriu e dela surgiu um sujeito simplesmente vestido de cuecas. Ele esfregava os olhos e parecia muito sonolento.   Tive a impressão de tê-lo tirado de seus primeiros afazeres nupciais. E ele me encarou num verdadeiro tiroteio de palavras,  dizendo:
- Que você quer, cara? Por que diabo está me infernizando assim no portão e na campainha? Por que não vai procurar o que fazer, seu filho da puta?!
Lá, frente ao portão, e parecendo um cachorrinho de rua, calmamente lhe respondi:
- Senhor, eu sou da TV Tupi! Sou do programa Blota Júnior! O senhor não estaria interessado nos produtos ERONTEX?
O sujeito, lá no meio do jardim, coçou e balançou a cabeça como que a dizer: eu não acredito, não acredito! Olhou para o chão como que à procura de uma pedra; fez cara  de homem mau e trovejou palavras em minha direção, gritando:


- Vai-te  pra p.. que te pariu, seu filho da p.. !


Pensei cá com meus botões: - será que ele vai abrir o portão? Será que ele vem aqui pra me matar?
Voltei os olhos para o chefe da equipe, que não parava de me encarar, e disse-lhe:
- Chefe, dá a minha conta! Não quero mais vender essa porcaria!
E ele, já com meus mostruários e pastas, respondeu:
- Nada vendeu, nada receberá! 
Voltei pra casa com as mãos ardendo, o Konga furado, os bolsos vazios e muito cansaço.
Não vi maravilhas no meu primeiro emprego na cidade maravilhosa. Ele só durou seis horas e meia, e como consolo voltei pra casa falando sozinho, assim dizendo: "liga pra isso não cara. Isso foi uma lição de vida!" 


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VELHO!  Velho é a mãe!


                Meus cabelos esbranquiçados me conduziram ao topo de uma situação dantes inimaginável. Inesperadamente passei a ser um velho, um velhote prematuro.
                Tinha saído de uma consulta cardiológica e acabado de ouvir garbosos elogios, tais como: você está em forma, rapaz! Seu coração é de criança, sua pressão arterial é invejável e... etc., etc., etc. Pra que melhor? – disse o doutor entregando-me um envelope, enquanto eu sorria fartamente satisfeito.
                Fiquei radiante, de alto astral e de moral elevada, e fui correndo ao ponto do ônibus abarrotado de felicidade com um envelope na mão. Entrei no primeiro que parou e, não tendo onde sentar fiquei de pé.

               – Senhor, por favor, sente-se aqui no meu lugar! – disse um jovem abordando-me, enquanto, com certa dificuldade tentava levantar-se de um banco onde um aviso acima explicitava

“RESERVADO PARA IDOSOS, GESTANTES E DEFICIENTES

                Espantado com aquele tipo de cordialidade que pela primeira vez eu recebia, preferi agradecer, assim respondendo-lhe:
                    Muito obrigado meu jovem! Estou bem! Desço logo!
                O ônibus corria macio e meus cabelos se alvoroçavam na brisa suave que adentrava pela janela e, assim como eu, todos a bordo miravam pela vidraça a cidade que parecia se deslocar para traz freneticamente enlouquecida.

                
                Cinco minutos depois...

               – Senhor – alguém me cutucou nas costas –, sente-se aqui!
               Virei a cabeça e me deparei com uma bela adolescente que, já comovida, levantava-se do banco à minha frente e eu lhe devolvi com a mesma cordialidade de antes:
               – Muito obrigado, querida! Já vou descer!
               Fiquei ranzinza, exclamando-me no consciente: caramba! Que está acontecendo comigo? Eu nem pulei a fronteira da segunda idade e já pensam que sou um octogenário.   Ainda me falta quase um ano para eu ser civilmente considerado velho, mas já me vêem como tal. Achei prematura a ideia de me olharem como se olhava a um vovozinho de outrora. Só me faltava ter uma careca, um óculos tipo fundo de garrafa, uma bengala, um gorro, um cachecol e as famosas meias grossas. 
              Velho é a mãe – gritei pensativo –, ou será que já pareço com um deles? – duvidei – Vou pintar esses benditos cabelos: decidi pensativo.
              Desci do ônibus e adentrei num vagão de metrô que de tão cheio quase não me coube. Fiquei ali espremido entre uma multidão silenciosa e cabisbaixa. Apenas o trem barulhava no túnel. Na minha frente duas crianças brincavam com um bicho de pelúcia enquanto devoravam balas e pipocas e, ao lado delas, sua mãe, cheia de sacolas, se espaçava folgadamente em dois assentos.
             – Fulano e beltrano, deixem esse senhor sentar ai! Não estão vendo que ele é muito mais velho e mais cansado que você dois juntos?
             Tais palavras me soaram como dinamites, mas, soletrando em pensamentos as devolvi furioso:
             – Ve-lho - é - a – puta – que - pariu.
            
             Fim do trajeto. Alívio total. 
             Mas para chegar em casa eu ainda teria que embarcar em mais uma condução: um ônibus, ou melhor, entrar num purgatório e pagar mais um pecado. Só não via mesmo era a hora de pisar em casa e contar a grande novidade dita pelo doutor: que tudo estava bem; que clinicamente eu era um menino, etc. e tal. Nesse ínterim uma alegria desconhecida se apossava de mim e meu sorriso radiava em direção ao nada, pois não tinha nem mesmo pra quem sorri: sorria para os estranhos como que sorrindo pra mim mesmo.

                   Cheguei, graças a Deus - falei contente.

 Entrei em casa e fui anunciando:   – meu bem, você nem sabe da maior! 
 – O quê é que é, Godofredo?
                  – O doutor me disse que cardiologicamente sou jovem e que, ainda, sou praticamente um garoto, e que tenho muita lenha pra queimar. Mas, apesar de tudo isso eu estou tinindo de raiva!
                  – Porque, Godofredo?
                  – Porque, na condução, umas pessoas me taxaram de velho antes do tempo. Fiquei uma fera! Eu ainda mato um! Tô puto da vida! isso não se faz!
                  – Mas você é o que, Godofredo? Você é um velho! Veja seus cabelos! Olhe-se no espelho: um velho! Nada mais que um velho!
                  Fiquei incrédulo e abobalhado com tal revelação. Logo ela, dizer assim?  Corri ao banheiro e, no espelho, pela primeira vez fui minucioso comigo. Fiz uma retrospectiva de trinta, quarenta, cinquenta anos, tentando me ver sem as rugas, e, deslizando minhas mãos ásperas pela  face cabeluda em monólogo desabafei dizendo à imagem refletida:
                 – Veeelho, veeelho! Velho não! Posso ser de um tudo na vida: usado, temporão, enrugado, ultrapassado, cafona, etcétera, etcétera, mas... Veeelho? Velho não! Velho é a mãe.


“Uma singela homenagem aos queridos idosos”
Do autor, aos 59 anos.
São Paulo, junho/2007

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OVINI - Relato de uma Visão 


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Segue um RELATO da minha filha Vânia – aos 29 anos.

       Madrugada, 9 de maio de 2006.
     Depois de um pesadelo assustador eu acordei. Mantive-me quieta, deitada e de olhos fechados para me acalmar. Mas, mesmo de olhos fechados vi uma luz que atravessava a janela do meu quarto que estava sem cortinas. Ao abrir os olhos me deparei com uma luz de um brilho intenso, que vinha do alto, por detrás de uns eucaliptos que existem no outro lado da rua e que ficam distante mais ou menos trinta metros da minha cama, donde costumo olhar os movimentos de suas folhas se balançando ao vento.
      Sentei-me na cama e fiquei a observar aquela estranha luz, que era grande, e vi que dela partiam fechos de outras luzes multicoloridas que saíam lentamente da esquerda e da direita e depois voltavam lentamente para o ponto de onde saiam. Eram lindas e, às vezes, eram mais fortes em tom azul claro.
          Levantei-me da cama ansiosa para contar a alguém o que eu estava vendo, e sem tirar os olhos da dita luz eu acendi a lâmpada do quarto e teclei o telefone para o meu marido que estava trabalhando. Ao tirar os olhos do telefone e voltar-me para a luz nas árvores, notei que elas haviam diminuído de brilho quase que totalmente, ficando apenas com um brilho comparativo ao da Lua e logo voltou a se acender com muita intensidade. Os fechos passeavam deslizando no ar como se estivessem se inflando, pois aumentavam de espessura e logo diminuíam de volume. Fiquei encantada com aquela visão na negritude da noite, e pensei: 
           - Aqui na Terra não pode existir nada igual!
          Até aquele momento a minha filha Michelly, de cinco anos, permanecia dormindo.
          Ao telefone falei ao meu marido o quê eu estava vendo, e ele, caçoando-me: sem me dar crédito, me pediu para descrever a “coisa”. Respondi que não estava vendo nenhum objeto, apenas luzes, e que eram lindas: como nunca tinha visto. Relatei assim:
          - Não dá para ver tudo direito, pois elas saem de detrás dos eucalítpos. Vejo que tem uma lâmpada grande, quase do tamanho de uma lua-cheia que vemos no céu, e que dela saem fechos de luzes coloridas com muitos azuis, deslizando pelo ar sempre para a direita e para a esquerda; aumentando e diminuindo de espessura. Os fechos vão e vêm lentamente pelo ar e depois se acoplam na base ‘da coisa’. A luz maior não se move, está parada no ar! Não há nenhum barulho! Que pena que não temos filme na máquina para fotografar! - lamentei.
          Falei ainda que a luz maior se acendia com muito brilho na medida em que os fechos  se distanciavam e, em meio à nossa conversa minha filha acordou e eu a peguei ao colo, e ela também via as luzes. E eu disse-lhe: - filha, fala pro papai que você está vendo um helicóptero! E ela - ao telefone -, disse: - não papai! Não tem barulho! Não é helicóptero!
         Meu marido me pediu para eu descrever a nave e voltei a lhe dizer que eu só via as luzes e que nada se mexia nas árvores, e que era tudo silêncio.
          Por um momento tive um pouco de medo.
          Ficamos ao telefone mais ou menos vinte minutos.
         
          A noite estava muito fria e muito escura, exceto nos eucaliptos, ali, bem pertinho de mim.
          Fiquei extasiada observando aquele reluzeio e só por volta das 5:15h (hora em que meu marido me confirmou pelo telefone, e depois o desligou), é que pude visualizar perfeitamente o formato do objeto da luz, pois ele se afastou vagarosamente alguns metros dos eucaliptos e deslocou-se para a direita e para baixo, e parou a poucos metros do muro que separa as árvores da rua, ficando todo à vista, somente com a luz maior acesa na sua parte inferior.
          Era um objeto com a dimensão de mais ou menos dois a três metros de comprimento, com o formato de uma bola de baseball achatada na parte superior e com sua fuselagem de cor escura como se fosse de um verniz envelhecido. A sua extremidade não era lisa, pois tinha saliências tal como as de uma parede chapiscada.
          À medida que o dia ia clareando ficou mais fácil vê-lo plenamente, pois sua posição era para o nascente e o raiar do dia se fazia depressa.
          Passou um ônibus na rua e o objeto foi saindo lentamente na direção Leste.
          Sentei-me na cama com minha filha ao colo e ficamos a observá-lo até que ele silenciosamente desapareceu no Céu. 

                                    *   *   *

Estou narrando porque tudo isto me intrigou.
Que objeto foi aquele?
E as luzes que  não obedeciam à velocidade da luz que conhecemos, pois elas saiam lentamente se inflando em forma de fechos e depois voltavam lentamente para a luz maior na base do objeto.
Por que ele diminuiu de brilho na hora em que acendi a lâmpada do quarto?
Procuro uma explicação”.
                                Vânia Mendes da Cruz.




NOTA: "encaminhei este relatório a um ufologista brasileiro que por E-mail me respondeu ser provavelmente um UFO, pois todas as características coincidiam com outros relatos e lamentou não haver prova fotográfica"

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O furto da Japona.



         A meteorologia alertava que nos próximos dias o frio iria ser de doer nos ossos e que por precaução todos teriam que se prevenir com roupas adequadas para tal. E foi nesse clima de grande preocupação que Renilda se acorreu ao crediário e lá deixou uma dívida com a aquisição de uma japona: como assim eram chamadas as jaquetas dos anos oitenta.
Pois bem, até ai nada de anormal, porém, no terceiro dia de uso da bendita japona Renilda se descuidou e deixou que uma das mangas se descusturasse. Visto o lamentável incidente ela levou sua preciosa peça para que sua vizinha Mary a costurasse. Mary deixou seus afazeres e se pôs a ajudar sua prezada vizinha.

- Ficou novinha – disse Renilda cheia de satisfação –, quanto te devo?
- Nada! Deixa isso pra lá! Foi só um servicinho de nada! – respondeu-lhe Mary acrescentando: mas que japona linda, né? Olha quantos zíperes e quantos bolsos que ela tem! É mesmo confortável e, tembém, muito linda!
Renilda se enchia de orgulho e contentamento e foi embora resolvida guardar sua japona num lugar bem seguro, dizendo a si mesma: - ela me custou uma grana e só irei vesti-la num dia muito especial! E a escondeu bem no fundo de um baú.
O inverno rigoroso se foi amenizando, e Renilda, por fim, se esqueceu da japona, pois não mais tinha tanta necessidade de se aquecer.
Dias se passaram, mas inesperadamente uma massa polar de grande intensidade cobriu toda a região com um insuportável sopro de vento gelado, e Renilda resolveu se proteger com sua linda japona. Abriu o dito baú, jogou tudo para fora, vasculhou a casa toda, mas... cadê minha japona?  Ela gritava sozinha dentro de casa: desconsolada, furiosa e nervosa, pois ainda lhes faltavam duas caríssimas prestações a serem pagas. No seu desespero ela misturava rezas com xingamento e pragas, e tudo por causa do sumiço de um bem que lhe era muito auspicioso. Ficou enlouquecida e resolveu investigar por conta própria. Tinha ela a real convicção de que alguém lhe furtara, mas... quem? Quem fizera isto?
Resolveu sair, dar uma volta para esfriar a cabeça. Dirigiu-se a um ponto de ônibus e lá uma grande surpresa a esperava. Seus olhos se esbugalharam luminosos ao verem sua endividada japona no corpo de Júlia, sua vizinha. Renilda se aproximou da mulher e em cuidadosas minúcias examinou a japona. Ficou endiabrada com o que via e partiu pra cima da fulana tentando desnuda-la, e destemida lhe dizia:
- Foi você sua ladra, vagabunda, cachorra! Quem diria, né? Logo você que é minha vizinha? Vamos, devolva minha japona senão eu chamo a polícia! Eu te mato! E no puxa-puxa ela rasgou a japona da mulher.
Júlia se estremecia dos pés à cabeça e tentava se defender, dizendo-lhe:
- Você é louca? Me larga, me larga! Socorro, socorro!
Uma pequena multidão se acorreu em desespero ao redor de ambas e logo entrou em ação separando-as.
Renilda partiu agoniada até a casa de Mary e contou de todo o ocorrido. Ela estava convicta de que sua japona estava no corpo da sem-vergonha da Júlia e... ponto final. Ninguém lhe provaria ao contrário: aquela japona lhe pertencia.

- Que é isso Renilda? Será que a fábrica só fez uma japona exclusivamente para você? – disse-lhe a costureira.

- Mary, foi você quem costurou o rasgão na manga da japona e a reconhece muito bem! Lembra? Vou leva-la como testemunha do furto. Iremos à delegacia agora mesmo!
- Eeeeu? Você é louca, Renilda? Não sou testemunha de ninguém e nem de nada!
A essa altura a suposta ladra já estava na sua casa cheia de lágrimas, constrangimento e vergonha. Agora ela precisava lavar e enxaguar a sua honra, e para isto aliou-se ao filho mais velho e, ambos, dispostos a provar a inocência rumaram para a casa de Renilda.
Frente a casa de Renilda o bate-boca estava descontroladamente fervoroso entre as duas mulheres. Uma, com o dedo em riste, acusava a outra de furto, e a outra, espumando de fúria, se negava da calúnia. E foi nesse ínterim de extrema agitação que surgiu a filha de Renilda que se interveio no tumulto, aos gritos:
                - Mãe, pára, pára, pára com isto! Fui eu que peguei a tua japona no baú e a esqueci na casa da minha tia! Que vexame! Que vergonha! Não tenho onde meter a minha cara! E abrindo uma sacola de plástico que trazia, disse-lhe: toma tua japona. Nunca mais a vestirei!
Palavras de me desculpe e me perdoe não foram suficientes para apagar a mágoa, e ambas, apesar dos vinte e cinco anos de distância, ainda continuam rivalíssimas.

                            Que papelão, hein? 


7 comentários:

  1. Tem toda razão em não querer ser velho, pois como dizem: Velho é o mundo...
    Rita

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  2. descobri que são dois escritores e não apenas um
    são dois pensadores, dois entusiastas, dois lutadores e desbravadores das letras.
    Descobri o que sempre soube, através de todos esses anos
    que tio e primo se completam,que são almas gêmeas e amantes delas, das letras.
    Que Deus os abençoe, que Deus os cubra de palavras maravilhosas e tocantes
    Beijos e sua sobrinhA E prima
    Fatima

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  3. Os vendedores precisam de trabalho, mas nós queremos sossego.
    Sorte a sua, se desse certo vc seria vendedor até hoje.Rita

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  4. Ficamos chateados com o passar dos anos. O envelhecer é lindo! Temos muitas experiências e lembranças maravilhosas!
    Idosa sim, velha não.
    Rita Tôrres

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  5. Essa menina tem coragem! se fosse eu morreria de medo. Parabéns!
    Rita

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  6. Incrível o relato de sua filha. Coincidência ou não, na decada de 90, meu marido e eu vimos uma luz igual a que sua filha relatou. Era mais ou menos uma 22:00 passou por cima de nós dois. A luz era intensa. Ficamos a obsrvá-la até sumir. Ela definiu a intensidade da luz com perfeição e real.

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  7. Cabelos brancos não determina velhice. Pena que muita gente taxa toda pessoa de cabelos brancos como velho. Deveriam primeiro olhar nosso aspecto físico, não é mesmo? E depois eu acho cabelos brancos um charme, principalmente para homens.

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