CONTOS DE TERROR


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 Pânico na Madrugada

Foi numa funerária o meu primeiro emprego, aonde, aos 13 anos de idade, adquiri a difícil arte da compreensão e da humildade.
            Lá, no florescer da minha doce juventude, vivi as mais turbulentas e atribuladas madrugadas recheadas de desconforto frente a dor e o sofrimento alheio, o que constantemente só me fazia pensar no bem-querer.
            A vida não me era assim tão prazerosa, mas tudo transcorria num harmonioso clima com os companheiros que passavam o tempo a se divertirem de minhas abastadas irreverências, dignas da idade. 
             A necessidade me impôs na obrigação de ser plantonista noturno daquela casa mortuária, onde foram inúmeras as noites em que dormi entre caixões, castiçais, coroas, flores, velas e tecidos de mortalhas; e onde, também, em muitas madrugadas tive o sono interrompido: ora para agilizar funerais: ora para fazer caixões; ora por puro medo.
            Para os pernoites de plantão eu sempre contava com a companhia de dois colegas: o Joé e o Jesulino, este, amigavelmente apelidado de Jesus. Eles compartilhavam comigo das insônias: coisas já habituadas, uma vez que faziam parte da nossa atribulada rotina, e raríssimas eram as noites sem elas.
           Consta-me que certa noite, ao retornar da escola, de longe avistei  o Jesus, que parecia triste e desolado. Estava ele só, sentado no batente da porta de entrada da funerária e visivelmente melancólico, o que me fez pensar em algo errado ter acontecido por lá, mas... o quê?  Ao me aproximar olhei temeroso para o interior da loja e vi que tudo, lá dentro, estava escuro como um breu, exceto um ponto clareado que se destacava na parede dos fundos e, com inevitável preocupação indaguei ao colega:
– Que houve por aqui?
– Sei lá, rapaz! Deu um estouro ai dentro,  buummm (sonorizou),  e apagou tudo – respondeu Jesus, deixando-me transparecer uma certa credulidade no que dizia.
             –  Meu Deus! – falei tapando a boca com a mão e acrescentei: cadê o Joé? – perguntei por perguntar, pois este sempre faltava ao plantão.
             – Mandou dizer que não vem, que tá gripado! Mas acho que é safadeza dele! – disse-me Jesus, fazendo-me acreditar na sua malícia de falar: como se tivesse ensaiado ao que iria me dizer.
Olhei para o relógio do pulso enquanto, preocupado, me abismava com a escuridão do ambiente, e exclamei extasiado:
– Já é quase meia-noite! Como é que vamos dormir ai dentro?
– O quê!? Eeeu, dormir ai dentro? Nem morto, camarada! Eu vou embora! Vou pra minha casa! Lá minha cama é muito mais confortável – disse Jesus, levantando-se; andando pela calçada; ao quê, em desespero lhe gritei:
– Ô cara, você tá louco? Vai deixar-me aqui sozinho, e no escuro? Isto é sacanagem sua! Volte aqui Jesus! E se na madrugada aparecer alguém para comprar um caixão, que farei sozinho?
– É problema seu e da defuntada! Dane-se! – redarguiu Jesus, zombeteiro, e a seguir sumiu na primeira esquina.
Xinguei-lo de “fi duma égua”, e depois, frente àquela inusitada situação, assentei-me no batente da porta, cheio de perplexidade, e me pus a imaginar uma solução.
Antes eu nuca havia xingado Jesus, nem tampouco dormido só numa funerária.
A agonia começou a se apoderar de mim e uma sensação de abandono invadia meus pensamentos. Eu não poderia continuar ali, sentado, e com a casa comercial aberta. Certamente o patrão iria me demitir.
- Diabos! - como desabafo, falei sozinho. – E agora, que faço? Entro, ou não? Questionei-me entre a cruz e a espada. Mas do alto da minha responsabilidade veio a única tomada de decisão: - é... devo entrar! – foi como me ordenei.  Mas por um instante me vi ali sozinho no mundo e com os pensamentos voltados para os utensílios inerente a féretros que lá no escuro me aguardavam.
Naquele tempo não havia telefone na cidade e tudo era dito boca-a-boca, por isso eu não tinha como avisar ao patrão, que morava longe e que detestava ser acordado nas madrugadas. A minha única alternativa era providenciar tudo sozinho, e o fiz: abaixei a porta de ferro; acendi um palito de fósforo; joguei os livros e os cadernos no chão e corri para o sofá-cama no qual eu sempre dormia, e lá me agarrei a uma chave de fendas que sempre deixava dentro do sofá-cama, e a guardei sob o travesseiro. Era ela minha única arma. Mas eu confundia os pensamentos e não temia pelos vivos: meu foco era os mortos.
Deitei-me e fiquei inerte aguardando o sono que não vinha, e por um instante deixei meus olhos bem abertos para me acostumar com a tênue claridade que milagrosamente provinha de uma pequenina lâmpada amarela – a única luz no ambiente – que alimentada por duas pilhas, permanecia sempre acesa sob os pés de um crucifixo. A dita lâmpada e o referido crucifixo estavam pregados acima de uma cortina branca que no vislumbre a vi devidamente fechada e que servia para separar os dois ambientes da loja: o de serviços e o de exposição de móveis domésticos e urnas mortuárias. Observei também que, pouco a pouco, eu ia me acostumando com a penumbra envolvente e que já distinguia quase tudo em minha volta, e cuidadosamente observava para o imenso silêncio que era sincronicamente quebrado por minha ofegante respiração.
O medo fazia-me tremer e era ele o meu único companheiro.
                   Já estava até sonolento quando, abruptamente a dita cortina correu no trilho metálico e abriu-se com estúpida barulheira produzindo um som estridente e assombroso em todo ambiente, o que fez meu coração pular para a língua. O susto e o pavor foram de tal monta que quase sofri um infarto. Meus olhos se lacraram, pareciam colados. Não me sobrou força, sequer, para expirar meu próprio ar e, enquanto isto, um descontrolado arrepio varria todos os meus poros me fazendo trepidar vibrantemente no sofá-cama.  Imaginei que de tanto medo eu poderia até morrer.

Passado alguns segundos daquele arrepiante momento uma torneira se abriu no banheiro e o forte barulho da água-corrente invadiu meus tímpanos com estonteante furor. Fiquei em estado de choque, porém, com o sentido da audição à toda prova. Um tremor incontrolável sacudia meu corpo. Era um pavor indomável. Imediatamente um som estranho veio se aproximando do sofá. Parecia alguém pausadamente arrastando chinelos, ao tempo em que emitia um ruído não muito conhecido: uma espécie de rosno e, mesmo de olhos lacrados, tive a sensação de que algo muito volumoso estava ali, bem próximo. E foi num impulso de inesperada e descontrolada fúria que abri meus olhos e me deparei com um caixão de defunto em pé; bem na minha frente; quase ao alcance da minha mão. Tinha ele um crucifixo dourado no centro da tampa, o qual reluzia com o brilho amarelado da lâmpada na parede, e se aproximava de mim ruidosamente vagaroso. Foi nesse instante em que instintivamente agarrei-me à chave de fendas e pulei sobre o dito espectro golpeando-o animalescamente. Não sei descrever de onde me surgiu tão abrupta fúria.
A dita ferramenta, por várias vezes, atravessou a tampa do caixão e, foi em meio àquela extraordinária luta que uma risada satânica ecoou no silêncio da madrugada. Era a voz do Joé, que por detrás daquela tampa do caixão se divertia macabramente às minhas custas. 
Por pouco uma desgraça não se fez acontecer em razão daquela brincadeira digna de imbecilidade.
E foi em meio à nossa descontrolada e furiosa discussão que a porta de ferro se abriu, e nela adentrou-se Jesus (sem cruz e sem áurea) carregado de uma felicidade radiante e rindo-se às gargalhadas. 
A seguir Jesus acendeu as lâmpadas da funerária as quais propositadamente havia desligado para a execução do  plano macabro.
Olhei para o relógio e sentenciei:
- São duas horas da madrugada. E esta, certamente, será minha última noite aqui!
O patrão, ao saber do ocorrido, deu a ambos quinze dias de afastamento não remunerado. 
Mas da minha mente nunca consegui apagar a extraordinária imagem de ter furiosamente lutado com uma assombração que - à qual se diga -, ainda existia no mundo dos vivos.


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        A Última Serenata




          Éramos bons amigos, e com música costumávamos fortalecer nossos vínculos de amizade.
         Nosso principal robe era fazer serenatas em noites de lua cheia: uma brincadeira ingênua que enriquecia  nosso ego e divertiamos os enamorados.
        Certa noite, eu e meus amigos João Cosme e Raimundo Torres, resolvemos fazer mais uma.
        Entre um gole e outro comíamos torresmo e rodelas de salame  e a seguir o som do violão quebrava o silêncio daquela madrugada de brisa, luar e poesia.


 “ Tanto tempo longe de você
   quero ao menos lhe falar.
   A distância não vai impedir,
   meu amor de te encontrar….(….)
   Eu te amo, eu te amo, eu te amo”.

      Havia a certeza de estarmos fazendo uma linda serenata.
      Nossas canções se alternavam e muitos, na cama, se deleitavam com nossas cantorias. Já outros, xingavam-nos.  

 “....esta noite, eu queria que o mundo acabasse
e para o inferno o Senhor me mandasse
 para pagar todos pecados meus.......”.

     A bebida já, já, acabaria. É alta noite. Plena madrugada. Hora dos corococós dos galos, e nós já havíamos cantado algumas canções e sentíamo-nos contentes e orgulhosos.
     Eu, ladeado pelo dois amigos, estava sentado num dos degraus da calçada da igreja
cantando e dedilhando o violão e  pressentia que alguma coisa não ia bem, pois, mesmo cantando e bebendo conhaque, vinha-me pensamento desagradável:: “aqui, nessa igreja, todos os mortos do lugar obrigatoriamente fazem sua última visita antes de irem para suas covas”, e nós estávamos sentados justamente no caminho deles. Isto muito me desagradava e deixava-me apreensivo.
    A lua descia rapidamente para o poente e sua luz já estava a desejar. Nesse instante nuvens negras e gigantes passavam  escorregando sua imensa sombra sobre a praça: o que nos deixava momentaneamente às escuras, então decidimos executar a última cantoria da serenata, cantando assim:

                         “   Não há, oh! Gente,
                             oh! Não!
                             Luar como esse do Sertão ...”

       E foi no meio da cantoria que o Raimundo cutucou em meu ombro e disse baixinho: 
       -  Olha, olha lá! Tem gente nos espiando, - e acrescentou ­- alguém está fumando na esquina da igreja. Vejam! Vejam!
       Parei o violão e calei. Olhamos para lá e vimos uma imensa brasa que continuamente acendia e apagava; acendia e apagava, parecia  um charuto ao ser tragado. Mas só víamos a brasa e nada mais.
      - Quem seria o engraçadinho? -  com olhares, telepaticamente nos perguntamos:
      - Deve ser algum sacana! Um filho da p…. qualquer! - proferiu o João Cosme em tom de zombaria, depois, encorajando-nos acrescentou: 
     - Vamos lá? Vamos ver quem é o safado? Vamos ver?
         Deixamos nossos pertences na calçada e disparamos rumo à tal luz, mas, ao chegarmos lá... espanto! Quase caímos dos degraus.
        - Aqui não tem ninguém! Não há ninguém! Quem estava aqui? - nos questionamos boquiabertos, olhando às voltas e atropelando nossas falas.
        Eu me arrepiava dos pés à cabeça. - Que está acontecendo? - Indaguei aos outros.
        Voltei a me lembrar que todos os mortos do lugar são levados à igreja e dela ao cemitério.  Tive a nítida impressão de estar vendo, em plena madrugada, um cortejo fúnebre arrastando-se pela praça  com mulheres de véus pretos e homens de chapéus na mão.
       Observamos que naquela hora nuvens negras cobriam o céu, e que o luar já era tênue, e que  um inesperado relâmpago iluminou tudo: certamente para enfeitar aquela cena macabra .
       Senti um frio correr nas vértebras e minhas pernas, desgovernadas, pareciam se congelar: Era o medo, aliás, o pânico. Minha respiração era ofegante e o coração batia-me até na língua. Ficamos inertes no tempo, um colado ao outro, como se fôssemos trigêmeos siameses.
       Estava assim decretado o fim de nossa serenata.
       Com uma pistola em punho o João Cosme proclama: - se for vivo leva chumbo e se for morto que se vá para o inferno. -  Cala-se pôr um instante enquanto nós nos entreolhávamos e a seguir ele acrescenta: - vejam! Vem alguma coisa lá na frente. Um vulto. Quem seria a essa hora?
      Não dava para se distingüir, mas víamos que era algo cinza, volumoso, do tamanho de um jipe; vindo lentamente em nossa direção; no meio da sombra da igreja. Ele rosnava e fazia um barulho sinilar ao de um cavalo andando no asfalto, e isso mais e mais nos aterrorizava. Ali não havia calçamento e nem cavalo. A praça era de  terra, pedregulho, grama  e areia. Por quê aquele barulho?
      O vulto veio, veio, e, sem ser identificável, parou à cerca cinco metros de nossos pés. Ele se parecia com uma nuvem. Nem mesmo sei definí-lo.
      Naquela hora a cidade preguiçosamente dormia e os galos não paravam com seus cânticos de corococós, assustando-nos, ao tempo em que saudavam mais um breve amanhecer.   Enquanto isso, nós fazíamos companhia àquele fantasma, que pôr sua vez deveria estar no céu, no purgatório ou no inferno, menos ali, perturbando o sossego e acabando com nossa romântica cantoria.
     - Vamos rezar um Pai Nosso? - sugeriu o Raimundo, com a voz trêmula, puxando-nos pelo ombro para ajoelharmo-nos no pedregulho da rua. E o fizemos.
     - “Pai -Nosso que estás no céu, santificado seja o  Vosso nome. . .”  ­ mas, antes do fim da reza a nossa voz desapareceu. O vulto em nossa frente se mexia e rosnava, o quê nos deixara afônicos, atônitos e em pânico.
      Instantes depois ele desviou-se para nossa esquerda, indo em direção a uma casa de esquina. Lá havia um poste de madeira há aproximadamente um metro da parede, e lá, o vulto misteriosamente encolheu-se e parou entre a parede e o poste. Ficou ali pôr um instante e a seguir emitiu um ruído similar a um feixe de lenha que é violentamente triturado e junto a esse assombroso barulho ele desapareceu terra adentro.
     Estávamos semivivos ou semimortos. Nada nos importava; nada nos impedia de tremer. Só tínhamos o medo como único aliado.
     A lua, nossa velha amiga e companheira, nos abandonara. Ficamos sós, amedrontados na escuridão.
     Andamos um colado ao outro até o centro da praça, onde teríamos que nos separar.
     João Cosme arrogantemente sacava de sua arma  e dizia nada temer. 
     - Quem invadir o meu caminho leva chumbo. -  assim ele jurava enquanto dava alguns passos em direção à rua de sua casa e, desligando-se totalmente de nós dois, ele desapareceu na escuridão.      
    O Raimundo foi para minha casa. Já o João Cosme, que se dizia destemido, foi novamente molestado pelo vulto: que o fez andar de costas até o batente de sua porta,  totalmente mudo.
   Creio que o vulto não gostou da dita encomenda: - se for morto, que se vá para o inferno.
   E a todos que ainda me indagam sobre o fato, simplesmente respondo:
   - Não sei quem era, vulto não fala!



5 comentários:

  1. Sei que são verdadeiras. Que amigos! Pregar uma peça dessas. Muito bom.

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  2. A imaginação me leva ao lugar dessa serenata.As
    almas sabiam que só elas escutavam.
    Gosto da maneira como vc escreve.Parabéns!
    Rita

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  3. Muito bom esse conto A última Serenata, sinto como se estivesse no local vendo o medo de vcs. Será que as moças ouviram a cantoria?
    Rita Tôrres

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  4. Muito bom, ótimo o conto. Quase não consigo terminar a leitura do Pânico da Madrugada. Meus olhos encheira-se de lágrimas de tanto que ri. É cõmico, é real, é interessante. Li alto para meu marido ouvir. Continue assim, com essa inspiração maravilhosa. Deus te abençou com esse dom.

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  5. A Última Serenata... quantas saudade! As moças não dormiam! Como dormir ao ouvir serenatas lindas como aquelas que vocês faziam! Uma pena que o tempo não volta! Eu era apaixonada pelas serenatas. Parabéns, você tem um dom incrível.Parabéns!

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