CRÔNICA


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Uma Viagem no Tempo


                      Como que numa espécie de transe fechei os olhos e viajei mais de cinqüenta anos atrás, à procura de mim mesmo. E lá estava eu, tal como me deixei: mais ou menos quatro anos de idade, malvestido, cabelos aloirados, chupeta na boca e pés no chão; olhar sereno e sorriso acanhado rindo pra si mesmo. Aquele menino solitário parecia não me reconhecer e por um instante ficou desconfiado com minha inesperada presença.
              Então lhe murmurei:
                  - Calma! Fique calmo, garoto! Nós somos um só! Eu sou você e você é eu! Somos a mesma pessoa, reconhece-me?
  Espantado o garoto olhou dentro dos meus olhos e me fez abrir o semblante, e eu também sorri, sorri a esmo, já com um sorriso sexagenário.
  As pessoas que passavam me olhavam achando-me esquisito mas, como ninguém entende dos pensamentos humanos, eu prossegui com minha visita ao passado. Passado que passa também nos meus sonhos até mesmo acordado.
 - Olha, sabe quanto tempo faz que não nos vemos? Sessenta anos! Você imaginava que um dia ficaria assim? Veja como estamos hoje! Ouça-me, tenho idade para ser seu avô! Que acha você se fosse meu neto? 
 O menino, envolvido pelo acanhamento, pôs um dedo na boca e sorriu bem dentro dos meus olhos e foi nesse instante que olhei minucioso para todo seu corpo, que era lindo. Sua pele morena brilhava sob o Sol e suas mãozinhas gordas se mexiam agitadas. Seus cabelos caracolados tinham luz, e sua boca, de lábios finos, se abria e se fechava envolvida num sorriso angelical.
 Tive a impressão de ouvi-lo perguntar:
- Por onde você andou? Porque você me deixou? Eu fiquei assim... velho?
Mas, tirando-lhe de toda dúvida respondi que andei na nave do tempo: o tempo que nos faz vivos; que modifica os corpos; que nos faz belo e nos enruga.
E num ato involuntário estendi-lhe a mão achando que seria tocada, mas alguém apareceu abruptamente chamando-me:
- Vô, que está pensando?
Recompondo o siso da consciência, lhe respondi:
            - Num menino que conheci... faz muito tempo, e que poderia ser meu neto tal como você!
- Mas... quem era esse menino, vô? – inquiriu minha neta.
Confundindo-a, lhe respondi:
- Eu! O menino era eu!
A menina balançou a cabeça como que dizendo nada entender, e não entendeu. E eu me contentei num monólogo, dizendo: - com o tempo ela saberá que também já fui criança tão bela e pura quanto todas e talvez possa, um dia, fazer tal como eu fiz: embarcar nas asas da saudade e mentalmente visitar a si próprio lá atrás, no tempo, e, assim, se encontrar com a criança que já foi um dia.




A Vara que sumiu na Olimpíada.




              Para o esporte brasileiro o dia amanheceu cinzento.
              Ninguém se conformava com o caso da vara que desclassificou a ginasta brasileira de salto com vara.
              Foi uma derrota casual!
              Mas o quê me chamou mais atenção foi o grande debate que se instalou em todas as bocas. Nunca vi tanta gente preocupada com uma simples vara. Dá-se a impressão que nossas florestas realmente desapareceram: não temos varas. Já não se fazem mais varas como antigamente.
              - Pois bem! Vamos ao que interessa.
              Levantei e fui buscar meu pão de todos os dias na padaria do Tuna, um velho amigo, e lá fiquei encabulado com o quê vi e ouvi: uma senhora discutia veementemente o sumiço da vara da atleta, aquela que desapareceu no campo sagrado da olimpíada chinesa. Peguei a conversa pela metade, mas foi o suficiente para conferir o desagrado de uma mulher comum, uma anciã, muito contrariada com a desclassificação da nossa esportista auriverde, e que assim ela desabafava:
             - Foi imoral o quê fizeram com o Brasil! Ela (a ginasta) jamais merecia ser eliminada das competições. Eles (os chineses) foram safados de mais: esconderam a vara dela, que era grande, e deram para a pobrezinha uma varinha de nada. Se ela tivesse pulado com a vara grande que costumava trepar, juro que ela ganharia o ouro. Pois a bicha é muito boa de vara. Vocês viram? O ouro foi pra uma lambisgóia russa, que pulou feia.
            O silêncio reinou por um instante.
            Encabulou-me, e achei maravilhoso ver e ouvir aquela senhora, em pleno amanhecer, debatendo de assuntos esportivos em época de inflação elevada. Eu já estava acostumado ouvir discussões sobre preços, juros, trocos, insônias e muitas outras coisas, mas, de esporte, me espantei.
            - Pois é - continuou a mulher -, espero que na próxima olimpíada o nosso comitê tenha mais vergonha na cara e dê mais atenção aos esportistas que lutam como cão para nos representar e depois voltam com a cara-mais-lavada-do-mundo. Missão cumprida: é como eles dizem.
             - Muito bem, muito bem! – disse-lhe o comerciante devolvendo-lhe algumas moedas de troco sem, contudo, esconder o sorriso que a fala lhe proporcionou.
                              A mulher saiu, também, com um sorriso radiante, brilhando-lhe a face.
- Missão cumprida, ela disse.




O ENÍGMA DO OVO DUPLO


A banha já borbulhava na frigideira e a fome doía no estômago na louca ansiedade para ser eliminada com a degustação de um ovo. Cauteloso, quebrei a casca do mesmo e o derramei na frigideira, mas, assustado a tampei,  e alarmei a todos de casa dizendo:

¾ Venham, venham aqui! Venham ver que loucura! Onde já se viu uma coisa dessas?

    O quê é, papai? Que houve?

Dizia um filho, dizia outro, e todos correram disparados rumo ao fogão.

― Sei lá, um mistério! Uma coisa estranha que a natureza fez: um inexplicável, um absurdo!

    Como assim, papai? – questionou o mais velho.

       — Não dá para entender nem para decifrar! Parece mesmo que o mundo está ficando louco! Já nem se pode mais comer dignamente um ovo de galinha — questionei duvidoso, frente a tal descoberta.

― Que está acontecendo ai? — gritou tronitoante uma vizinha, e correndo em desespero apareceu na cozinha.

¾ Sei não! Ao que me parece nesse ovo sairiam dois pintinhos!

— Grande coisa! — rebateu a dita cuja bem pertinho do meu ouvido, e acrescentou com sarcástica zombaria: — já vi, muitas vezes, dois pintinhos saírem dum mesmo ovo. Grande coisa! Grande novidade! Que bobagem!

― Mas... Não assim! Igual a este ovo, não! — falei destampando a frigideira e expondo a grande descoberta.

― Deixa-me ver, deixa-me ver, com licença, com licença — todos se acotovelavam cheios de curiosidades num agitado empurra-empurra frente ao fogão.

Então, falei aos berros:

― Crianças, cuidado com esta banha! Não vêm que ela está muito quente? Cuidado!

Como pode? Quer dizer que..... Não! Isto não! Isto não é possível.

E um rígido debate se instalou na cozinha

Cada um narrava sua preciosa teoria, mas findava achando-a inviável. E nesse ínterim surgiam as mais variadas questões dignas de tese de doutorado:

— Será que isso poderia acontecer com seres humanos, ou seja: um zigoto com esta estúpida anomalia? Só espero que jamais aconteça - questionou alguém mais biologicamente entendido. Já, outros, assim se manifestaram:

― Nenhuma professora me falou desse assunto! Já imaginou se isso ocorresse com uma vaca, uma baleia, uma égua ou uma aliá?

Disse o mais velho:

— Eu não gostaria de ter acontecido isto com a minha mãe. Já pensou: eu ter nascido com um irmão por dentro de mim? Como poderíamos viver? Acho que nem nasceríamos!

— Pois é... Vocês estão vendo o que a natureza fez: quebrei um ovo mas havia um outro divinamente normal por dentro, com casca, clara e gema. O quê quer dizer que nasceriam dois pintinhos, só que um por dentro do outro. Já viram tamanha estupidez?
    Nããããão!





Crônica de uma morte adulterina

Mal o dia amanheceu e portas e janelas se abriam, e todos saiam correndo, apavorados, aturdidos e assustados rumo ao Beco Sujo, como assim era chamado um lodoso beco de fundo de quintais que instantaneamente estava tomado por uma multidão de curiosos: alguns deles trepados em muros e telhados, pois queriam, a todo custo, assistir o desfecho de um inusitado fato alarmado de boca em boca e de rua em rua por alguns moleques que corriam apavorados gritando a todos os pulmões:

- O coroné Laudino morreu!
- O coroné morreu!
- O safado está morto!

- Eh... o descarado do velhote escafedeu mesmo! Este gozou na vida! - foi como alguém, em meio à turba, falou bem próximo ao meu ouvido e ainda gargalhou zombeteando: - o descarado do velhote morreu como bem queria: na safadeza. Estão dizendo que ele está teso na cama de Aurora Vilela. É... Isto é que é uma morte das boas, homem! Quem não quer morrer assim?
 Mais adiante alguém comentou, em bom tom, que o coroné estava “nuzinho da silva”. Já outro jurava que ele estava só de cuecas e, falas e mais falas ruíam abastadamente entre os curiosos. 
Era esta a pauta dos zunzuns, dos disse-que-disse e do alvoroço em rodinhas de desocupados. E tudo virava gozações e piadas maliciosas.
Aurora Vilela era uma mulher que possuía um caráter ilibado e jamais deveria estar envolvida entre as maldosas falácias que se espalhavam numa desenfreada imoralidade entre ela e a figura honrada do coroné, o qual se jurava estar finado sobre os límpidos lençóis daquela dstinta mulher. Não havia como se acreditar sem ver, e para tal preferi ficar no meio do lodo do Beco Sujo à escuta, e à espera de uma prova cabal.
Jamais se viu ali tamanho alvoroço, também... puderas: não era costumeiro se velar um defunto assim tão famoso, menos ainda na atabalhoada circunstância de uma suposta morte adulterina tal como se alardeava à rosa-dos-ventos.
Um pandemônio fervilhou no Beco Sujo e em suas adjacências, e o povoado inteiro parou.
Que conversa louca, rapaz? - adverti ao sujeito que zombeteou no meu cangote, haja vista ser o coroné um indivíduo de respeito, de caráter e, a bem da verdade, até ali, bem casado com sua esposa Adelina, e que merecia, mesmo se morto, um tratamento mais digno pelo povo do qual foi sempre seu protetor. Daí o meu descrédito por tamanho despautério. Era ver para crer.
À medida que o tempo passava aumentava mais e mais a comoção e o povo não parava de chegar ao Beco Sujo numa aguçada e frenética curiosidade  como que se divertindo com a desgraça alheia, pois tudo transcorria com gestos obscenos e falas sujas;desavergonhadas, de onde partiam risos e chacotas com os nomes do coroné e da venerável Aurora Vilela, formando assim uma diversão triste e deplorável.
Os agravos só cessaram com a inesperada chegada da viúva Adelina em meio as suas copiosas lágrimas, o quê atestava quão intensa era a dor que irradiava em seu sofrido coração. Ela surgiu cabisbaixa e toda vestida de negro, de mãos postas no queixo e visão fixada no chão, ao tempo em que balbuciava palavras sem nexo. Aproximava-se da multidão amparada por filhos e parentes, todos de olhos avermelhados; lacrimejados e de semblantes amarelos, e todos, bem juntos, marchavam tal qual um pelotão rumo ao corpo lívido do coroné Laudino que, frente às duras evidências, passei mesmo acreditar estar ele realmente teso sobre o incontestável cenário do adultério.
De repente reinou o silêncio na multidão, pois todos queriam ouvir claro e rispidamente o inamável diálogo entre as duas personagens que blindavam o maior dos mistérios daquela fria e alvoroçada manhã interiorana.
De repente ouve-se uma eclosão de interrogativas, ditas aos berros: 
- Explique-me aqui, sua vadia: como foi que o meu marido foi morrer em cima de sua cama? Diga-me! Fale, sua vagabunda!
Adelina bramia ululante e gesticulava descontroladamente. Ela estava tomada por uma onda de ódio que invadia o seu doído pranto. Era um rancor pesado, distinguível em sua aparência; de um brilho fosco em seus olhos encharcados de lágrimas e na pronuncia abrupta de suas palavras ofensivas e nos trejeitos pesarosos e carrancudos de suas trêmulas bochechas. Já Aurora Vilela a tudo ouvia pasma e estática; com a visão arredia e indefinida e de olhar arisco, assombroso e amedrontado. Ela apenas se limitava a esbarrar a entrada de Adelina em sua casa, pois mantinha seus braços nus esticados entre a porta escancarada e nada respondia, apenas apelava pela presença do delegado, o qual alguém jurou estar ele inda dormindo por ter pernoitado em diligências.
- Não! Não matei ninguém, Adelina! Deus é testemunha! – retrucou Aurora Vilela quase que inaudível, e naquele exato momento a multidão desgovernada reascendia o fuzuê, e barulhosa se aproximava das duas mulheres.
Tire Deus dessa sua cachorrada! Você é uma vagabunda, uma assassina! Você matou o meu marido na safadeza! E, erguendo a mão direita deu-lhe um tapa no meio da cara satisfatoriamente gritando: - toma, toma sua vadia, toma sua cachorra!
 Foi um Deus-nos-acuda: as duas mulheres arremessaram-se uma contra a outra e se atracarem, mas alguns homens seguraram-nas tentando conte-las, ao que só foi possível quando algumas partes de suas vestes foram rasgados e exibiram seus seios nus.
Havia uma agitação em todos os olhares e as pessoas presentes se mexiam para terem melhores ângulos e uma ampla visão daquela pândega. Já alguns gozavam satisfatoriamente com as insolências daquele deplorável quadro envolto à névoa de uma manhã de Sol brando na sonolenta Vila de Cipoaçu.
 Repentinamente eis que apareceu o senhor Antonio Feu, o delegado, que ainda sonolento vinha acompanhado do soldado Edivaldo, e ambos rasgavam vigorosamente a multidão exaltada.

*

 Entre a multidão havia alguém que já tinha chegado próximo ao corpo do coroné e retornara relatando do seu estado real : que ele estava divinamente sóbrio de boca e olhos fechados; de camisa aberta ao peito; de cinturão afivelado à cintura e calçado em botinas; que seus óculos e chapéu distavam alguns centímetros de um urinol sob a cama, ao quê, depois, se constatou ser parte incontestável do triste cenário.
 Seguindo os passos de Aurora Vilela que se parecia envergonhada, cabisbaixa e nervosa, e que esfregava suas mãos com um incontrolável desespero, nós nos adentramos enfileirados pelo  estreito corredor da casa e conduzimo-nos respeitosamente silenciosos pelo vislumbre do lugar e logo nos deparamos com o corpo inerte do homem mais poderoso de Cipoaçu. O homem que conduzia os destinos de uma comunidade e que decidia sobre tudo em sua jurisdição: do arranjar uma parteira ao desjejum de um esfomeado: do apadrinhar uma criança ao confortar um moribundo. E lá, no seu último repouso, estava ele com uma fisionomia perene de onde brotava um lânguido sorriso a escorregar por entre os lábios ainda róseos, o quê parecia indicar pouco sofrível com o feito e..., nem parecia morto, parecia dormindo tal como balbuciou o soldado Edivaldo em meio ao lamento soluçado da viúva e de seus filhos, que pasmos e brutalizados com a cena ali vista, se puseram a lastimar da irreparável desonra e da desnecessária vergonha que ora sentiam.
  Pela janela, escancarada para um roseiral perfumado, um feixe de luz sombrio atravessava a névoa e se estendia pelo piso úmido de chão-batido e subia pelos pés da cama indo clarear o peito seminu do corpo inanimado. Duas velas acesas sobre uns criados-mudos desprendiam no ar um odor funéreo e delatava a desolação do ambiente e, entorno às quatro paredes um pesado silêncio se quebrava com os tic-tacs de um relógio-cuco que calmamente pendulava e, também, com um tinido intermitente do sino da capela que soava pausadamente em tom grave, avisando, como de costume, o falecimento de alguém do lugar. Silêncio este que só foi extinto quando Adelina com suas mãos postas à boca, olhava fixa e pesarosa para o rosto empalidecido sobre a cama, e assim ficou por um instante como que em estado de graça; como se nada via nem ouvia, e que parecia estar viajando ou voando em seus longínquos pensamentos, donde, porventura, rememorava os momentos de prazer vividos em suas restritas intimidades; dos passeios de mãos dadas e de tantas e tantas outras doces e memoráveis lembranças que vagamente fluíam em sua mente tristonha e que ao cair na estúpida realidade vista a olhos nus, sentia que sua pomposa vida transformara-se em dor e vergonha, e foi então que ela transfigurou-se, e cheia de ira pulou histericamente animalesca sobre o cadáver aos urros e socos gritando:
 - Seu canalha! Seu miserável! Seu traidor desgraçado! Você me traia todo este tempo.  Quero que os urubus te dilacerem e que depois vá para o inferno!
 Todos se arrepiaram frente à tão imprópria cena e nesse ínterim algumas mulheres que se acotovelavam no corredor da estreita moradia, e que tinham a fama de excelentes cantadoras de velório, aproveitaram do êxtase e passaram a murmurar um canto lastimoso e lúgubre, no qual rogavam a salvação para aquela alma penada, assim entoando:

                        Piedade Senhor!
                        Por piedade livrai-o do fogo eterno.
                        Piedade Senhor!

Enquanto isto a luz de duas velas piscava mortiças e a pequena casa de Aurora Vilela era tomada por dezenas e mais dezenas de pessoas que queriam matar a curiosidade e registrar visualmente os instantes finais do semblante do coroné Laudino.
Qualquer tomada de solução era ali indizível, e as perguntas fluíam aleatórias, como: onde será o velório? Quem vai vesti-lo? Cadê o padre? Quem fará o caixão?
As respostas eram olhares vazios.
De repente Aurora Vilela gritou:
- Tirem este traste da minha casa. Tirem-no, senão eu o arrasto para o Beco Sujo!
Adelina enrubesceu-se. E retirando-se do lugar deu-lhe as costas prazerosamente dizendo:
- Já que o desfrutou em vida, que fique com o que dele sobrou! Faça bom proveito!
- Volte aqui Adelina! Escute-me! Não sou mulher de desfrute e nem mulher à toa, estás me ouvindo?
E mais um bate-boca fervilhou frente aos restos do coroné, o quê foi prontamente extinto com a intervenção do delegado ao exigir respeito.
- Calma! Calma! É com calma que se resolve! - advertiu o soldado Edvaldo em meio ao desespero de Aurora Vilela que permanecia chorosa e agitada, momento em que apontava para o cadáver e exclamava:
- Calma? Como ter calma com uma coisa desta? Não quero esta desgraça na minha vida! Eu não matei este cão, perguntem pra comadre Laíza que ela viu tudo! Eu tenho testemunha! Ela viu tudo! Eu não matei este traste e... antes eu o tivesse matado! Ele parecia endiabrado: correu; deu gritos e... pronto: morreu! Foi pros quintos dos infernos, entenderam? Querem saber mais? Pois bem: ele tentou me agarrar! Eu nem vi a hora que este maldito entrou na minha casa. Fui surpreendida.
- Calma! Calma!  -  ponderou novamente Edvaldo – O delegado está averiguando tudo tim-tim por tim-tim – acrescentou.
- Conte outra história, sua cachorra! Você acha que ele morreu à toa?  -  gritou Adelina voltando-se apressada do quintal e aos berros indagava: como é que um homem bem-casado morre sobre a cama de uma mulher-dama, uma puta? Diga isso lá fora pro povo! Quem  vai acreditar em ti, sua maldita?
Desta vez não houve respeito: as duas se agarraram brutalmente furiosas e rolaram por sobre o cadáver, e um redemoinho de pânico envolveu a todos.
Passado este momento de crucial excitação Adelina finalmente saiu da casa e se dirigiu ao Beco Sujo onde, por um instante, permaneceu ladeada de curiosos que queriam mais explicações.        
Na casa de Aurora Vilela a inquietação era dominante e o povo se acotovelava nos mínimos espaços na ansiosa vontade de presenciar de tudo, de ouvir de tudo, de saber da roupa-suja que envolvia o coroné que, para alguns não passava de um malfeitor: que vivia a esconder a sua má reputação; que vivia assediando as mulher do lugar; que se fazia de benévolo mas que não passava de um salafrário, um ordinário, mas... para outros, era um santo homem, que só fazia o bem; que ajudava aos necessitados; que acolhia aos famintos e vestia os nus; que dava trabalho a pais de família e que tinha uma imensa legião de afilhados: prova incontestável de sua benevolência e popularidade.           
- Calma comadre Aurora! Calma que eu vi tudo!  Sou sua leal testemunha! Você não está só!  -  gritou uma mulher da multidão.          
- Quem está gritando lá fora?  - interveio o delegado, saindo para o quintal.
- Sou eu, Laíza, a vizinha de comadre Aurora! Quero lhe dizer, seu delegado, que ouvi uma gritaria horrorosa nesta casa e vim averiguar. Entrei sorrateira e dei de cara com o coroné Laudino na cozinha, discutindo não sei o quê com a comadre Aurora. A comadre lhe dizia em voz baixa que pouco lhe devia e que a respeitasse, e que um dia o pagaria. Mas o coroné bramia que ela o pagaria de qualquer jeito.
Adelina, lá fora, no Beco Sujo, cortou o depoimento de Laiza, gritando:
- Mas... Que jeito? Você é da mesma laia dela!
- Calma, sinhá Adelina! Calma e me respeite! Aqui só direi o que vi e ouvi.
- Continue - disse Antonio Feu.
- O coroné dizia que a comadre lhe pagasse a dívida nem que ela dormisse no chão, e que, caso contrário, que ela lhe quitasse na própria cama. E foi nesse instante que a desgraceira se fez.
- Que desgraceira?  - inquiriu o delegado, querendo mais detalhes  -   Exijo que a senhora conte toda verdade do que viu e ouviu!
- Ta bem, delegado! Foi assim: a discussão já estava muito fervorosa quando a comadre deu-lhe um tapa na cara e nesse instante os filhos dela partiram pra cima do coroné a socos e pontapés, e este, se sentindo em maus-lençóis, passou a correr por toda a casa. Ele entrou em desespero apanhando dos meninos e por fim adentraram-se no quarto e lá se atracaram. Os óculos do coroné caíram, e ele sem nada enxergar começou a tropeçar nas coisas e a derrubar tudo em sua volta. Até mesmo o urinol que estava sob a cama foi chutado e saiu barulhoso, rodando pelo chão. De repente o coroné começou a dar uns gritos, eram gritos diferentes e agonizantes: parecidos ao de uma grande dor e, por fim veio o silêncio.
- Porque a cama?  -  perguntou-lhe o delegado.
- A comadre lhe pediu como fiador na compra de uma, mas, como ela ganha pouco com pensão do falecido marido, não pode pagar a última prestação. Todos sabem que o coroné sempre gostou de ajudar a todos de Cipoaçu, e foi por isso que ele morreu. O resto todos sabem! – concluiu Laiza.
- Legítima defesa!  - disse alguém dali.
- Sem dúvida: legítima defesa!  - foi como todos os presentes votaram uníssonos.
- É.... Foi mesmo legítima defesa!  - concordou Antonio Feu pondo fim ao interrogatório.
- E agora, delegado?  -  questionou Edvaldo -  Alguma ordem?
- Nenhum! Apesar da legítima defesa consideremos como morte natural!
Adelina voltou para sua casa envolta a um aglomerado de parentes e amigos que compartilhavam da sua triste dor e ululantemente dizia: nunca mais quero lembrar desse traste. Acabou! Acabou!
O dia transcorria moroso e o povo de Cipoaçú se acercava  zelosa e respeitosamente ao esquife que fora colocado em velório sob uma copada figueira que havia no centro do Cipoaçu.
As cantadoras não cessavam com suas ladainhas e preces, e essas cantorias se misturavam às graves badaladas que soavam tristemente da torre da capela.
Apenas os clamores de afilhados, comadres e compadres é que se ouvia à distancia e os comentários pareciam infindos.
Ao entardecer um caro de bois conduziu o corpo do coroné Laudino até a sua última morada em terras de Cipoaçu. 
A sua família foi omissa a qualquer cerimônia, pois o denegriu de adúltero.

Seu nome ainda é vagamente lembrado pelo bem e pelo mau que teria praticado.

5 comentários:

  1. Muito emocionante, essa viagem no tempo.
    Sinto como se também presenciasse essa regressão
    Uma maravilhosa crônica.
    Rita Tôrres

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  2. Esse coronel tinha que está no lugar errado para morrer! As aparências enganam mesmo!
    Rita

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  3. Muito boa essa crônica. Fico a imaginar a quantidade de gente querendo comentar da vida dos outros, sem ao menos ter certeza do que realmente está acontecendo.
    Parabéns!
    Rita Tôrres

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  4. O que aconteceu com esse ovo? Não tiraram nenhuma foto?
    Fiquei curiosa para conhecer essa raridade!
    Caso tenham fotos favor me enviar.

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  5. Inédito esse seu achado! Realmente está havendo um descontrole, até na natureza.
    Muito boa essa cronica!
    Rita Tôrres

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