CORDEL


Medo de Lampião

minha mãe me disse um dia
um caso de encabular
que na terra onde vivia
nem uma alma ficou lá
pois um boato corria
que em plena luz do dia
Lampião ia chegar

todo mundo em debandada
procurava se esconder
entrando mato a dentro
fugindo pra não morrer
pois o grande malfeitor
respeitado que nem doutor
logo ia aparecer

que levaram toda tralha
para dentro do matagal
cavalos, bois e galinhas
não podiam deixar sinal
que até as pisadas no chão
se apagava com as mãos
por medo do marginal


nem fogo lá se acendia
pra fumaça não correr
pois segundo se dizia
Lampião podia ver
e que farinha com rapadura
se comia com fartura
pra de fome não morrer


à noite, tudo no escuro,
era hora de rezar
rogavam pra todo santo
pedindo pra se salvar
pois Curisco e Lampião
não tinham mesmo perdão
na hora de atirar

um silêncio de doer
era o que mais se ouvia
um chorinho de criança
nem de noite, nem de dia
boca tampada com pano
pra guri não ter engano
apanhava e dormia

nem cachorro ficou vivo
pra ninguém ser delatado
o latido era um perigo
para o povo encurralado
quem ali falasse alto
levava tapas e socos
e ia dormir sossegado

me disse que nunca viu
tanta gente amedrontada
por causa de um boato
que acabou não sendo nada
que só tinha homem frouxo
chorando de ficar roxo
com medo de levar bala

ficaram por mais de mês
escondidos que nem cão
que até criança nasceu
na areia daquele chão
e que o tempo ia passando
e o desespero aumentando
mas... NADA DE LAMPIÃO

resolveram sair do mato
com a cara-mais-lavada
todo mundo envergonhado
por ter fugido do nada
se Lampião ficou sabendo
pelo sertão andou morrendo
de tanto dar gargalhada.
  
Dedico este poema à minha querida mãe (in memória)
por ter me contado este belo episódio em um momentos de muita alegria.






O TRÊS OITÃO  


eu estava trabalhando,

cuidando da obrigação
quando vi alguém correndo
bem na minha direção
não conheci o sujeito
mas juro, eu vi direito,
ele estava com um três oitão

fiquei muito apavorado
joguei a caneta pro lado
e socorro fui procurar
nem sabia o que fazer
com medo d’ele me ver
e sob a mesa fiquei
esperando a bala passar.

depressa eu disse à chefia
que na área tinha um ladrão.
ela  morrendo de medo
conferiu e me deu razão
e ligou  para a polícia.
dizendo que estava vendo
um cara com um três oitão.


que o sujeito mirava a arma
bem na nossa direção
era assim que ela dizia
ao policial de plantão
e concluía afirmando:
ele parece  o capeta
armado com um três oitão.

a criançada na rua
não parava de correr
e nós, tremendo de medo,
sem saber o que fazer
rezava pra todo santo
com uma vontade danada
de fugir pra não morrer.

o cara fazia gestos
como quem ia mesmo atirar
se abaixando e levantando
não parava de nos mirar
e nós, de cabelo em pé,
quase morrendo de medo
sem se mexer do lugar

de repente alguém gritou:
“calma, aquilo é só diversão”,
são uns moleques brincando
de polícia e de ladrão
só não deu tempo de desdizer
ao que antes se havia dito
ao policial de plantão.

logo, logo as sirenes
não paravam de gritar
era a polícia chegando
pra por ordem no lugar
e não vendo nenhum ladrão
me chamaram de bobão,
abestalhado e vulgar

o vexame foi dos grandes e
espero ninguém passar
quem quiser brincar assim
que procure outro lugar
pois passei muita vergonha
com aquele montão de tirar
querendo me caçoar           


XXXXXXX---XXXXXXX

O Cão Sargento 


parece que é mentira
o que agora eu vou contar
pode crer, é só verdade,
você tem que acreditar
um cachorro vagabundo
que vagava pelo mundo
só veio me atazanar

pra todo lugar que eu ia
era somente agonia:
o coitado me acompanhava
querendo um cafuné
era um tormento danado
parecendo um carrapato
agarrado no meu pé

o pobre do vira-lata
estava todo pelado
pois a sarna lhe comia
do focinho até o rabo
e o infeliz apenas gemia
de coceira e de agonia
olhando-me apiedado.

aquele quadro de dor
mexeu com meu sentimento
levei o bicho pra casa
pra lhe dar tratamento
- vou levá-lo ao doutor!
falei pra quem me indagou
com nojo do cão pulguento


o doutor foi verdadeiro
quando o examinou
- este cão tá em frangalho!
foi o que ele falou
remédio pra carrapato
no papel ele anotou
depois pegou um termômetro
e no fiofó lhe enfiou.

- a febre ta muito alta,
vou dar-lhe uma injeção
(disse olhando o termômetro
pra fazendo anotação)
pois do jeito que ele está
o quadro pode agravar
precisa de internação

- quanto custa tudo isto?
preocupado indaguei
- quinhentos e vinte paus,
foi o que dele escutei
o doutor me deu a conta
assinei um cheque à vista
e adiantado paguei.

não muito alegre eu saí
pois o cheque não tinha fundo.
mas com ele eu ajudei
salvar alguém deste mundo
aquele cãozinho pulguento
que o batizei de “sargento”
não era mais vagabundo.

não demorou muito tempo
uma carta recebi
o banco cobrava fundo
do cheque que emiti
sem ter pena e sem ter dor
paguei tudo rapidinho
pra não ir pro xilindró

o sargento se curou
da doença que sofria
nunca mais se lamentou
da coceira que sentia
e virou um valentão
mais temido que um leão
para a minha alegria.

nunca mais alguém tentou
encostar-se ao meu portão
o sargento estava atento
para a minha proteção
e apesar de ser pequeno
era mesmo um grande cão

certo dia o sargento
atrás de um carro correu
pois era do seu costume
querer morder o pneu
nesse dia não deu sorte
queria mesmo a morte
e esfacelado morreu.

chorei como criança
com a morte do amigão
e muito triste eu repetia:
não quero mais nenhum cão!

o sargento foi embora
e com a saudade que sinto
meu coração ainda chora


***********


AS DOIDEIRAS DE ZÉ DOIDIM


Me lembro perfeitamente
da Escola Silva Jardim
onde tinha um moleque
chamado de Zé Doidim
era um garoto capeta
que vivia arrumando treita
e jogando a culpa em mim

ele um dia entrou na igreja
bem na hora do sermão
e chamou o padre de corno
só por pura diversão
o vigário bem irritado
disse que tinha um diabo
lhe fazendo tentação

fez quatro sinais-da-cruz
pra melhor se proteger
e deu ordem a Zé Doidim
pra dali se escafeder
o moleque não gostou
e tão logo retrucou
dizendo: vai se.......

*
voltando pra nossa escola
onde o “bicho” ali pegava
não vou dizer outra coisa
senão a história passada
foi soco pra todo lado
o maior arranca-rabo
por causa d’ua namorada.

o safado do Zé Doidim
era mesmo atrapalhão
passava a mão nas meninas
só pra arrumar confusão
quando u’a briga ele arrumava
bem depressa escapava
deixando todos na mão.

me lembro de uma menina
chamada de Juliana
que se achava a boazuda e
certamente a mais bacana
foi ela a causadora
de uma rixa duradoura
por se sentir gostosona


Certo dia essa menina
começou uma choradeira
era um choro bem nojento
que alarmou a escola inteira
e o Zé Doidim comovido
foi consola-la no ouvido
sentado na sua carteira.

a coitada da menina
não parava de berrar
foi então que Zé Doidim
foi depressa acalentar
aproveitou o momento
e sem ter constrangimento
começou a lhe apalpar

mão aqui e mão acolá
foi Zé Doidim esfregando
e Juliana em prantos
foi logo se esquivando
mas a coisa perigou
um soco ela acertou
e ele caiu se estatelando

o namoradinho dela
que se chamava Romeu
quando viu aquela cena
logo se enfureceu
ficou todo avermelhado
de olhar arregalado
e ai o pau comeu
o Romeu partiu pra cima
querendo mesmo brigar
parecia um leão faminto
querendo se atracar
foi um corre-corre danado
o maior arranca-rabo
um pega aqui, pega acolá.

Zé Doidim tomou u’a surra
como nunca esperava
e a menina Juliana
que há pouco tempo chorava
dava pulo de alegria
dizendo, sim, agora via
a vitória de quem amava

quase ninguém sabia
daquele namoro escondido
se a turma fica sabendo
o Romeu estava perdido
pois o pai de Juliana
era uma fera insana,
um perigoso bandido



foi então que Zé Doidim
encontrou uma solução
pensou direito na vida
pra tomar uma decisão
- Vou avisar ao pai dela
disse com toda cautela
e foi procurar o Tonhão

o Tonhão depois que soube
que a filha namorava
jurou dar uma surra
na pessoa que mais amava
e ainda prometeu:
vou dar o maior cacete
quando eu encontrar o Romeu

Zé Doidim voltou feliz
radiante de alegria
e disse pra todo mundo
que esperança agora via
de ver o Romeu caído
quebrado, todo moído
pra vingar aquele dia.

o Romeu ficou sabendo
do grande alcagüete
e avisou pro Zé Doidim
vou te dar outro cacete
pra você nunca esquecer
e de uma vez logo saber
que comigo não tem macete.

Zé Doidim tomou outra surra
bem pior que a primeira
e nunca mais ele apalpou
as menininhas na traseira
ficou um homem direito
de pudor e de respeito
e pôs fim na brincadeira.

A turma ficou contente
com aquele final feliz
pois ninguém mais suportava
tanto sangue de nariz
e Romeu com a Juliana
foi a coisa mais bacana
foi isso que o amor quis


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O JEGUE BARROSO



minha terra tinha um jegue
que se chamava Barroso
o que lá ele aprontava
causava sorriso e gozo
e todos queriam ver
o que ia acontecer
com o namoro do Barroso

sim, minha terra tinha um jegue
que só causava furor
muito forte e valente
topava qualquer batente
derrubando cerca e gente
pra saciar seu amor



quando ele aparecia
só se ouvia a gritaria
da mulherada correndo
e ele com a jumenta
tomando coice na venta e
de amor quase morrendo

num belo dia de missa
na hora da devoção
todos cantavam “benditos”
pedindo a Deus proteção
é quando surge o Barroso
causando grande alvoroço e
acabando com a procissão


um corre-corre danado
do povo pra se esconder
a igreja não mais cabia
de gente que ali corria
tentando se defender
e o que Barroso aprontava
todo mundo reclamava.
só as mocinhas sapecas
com a mão aberta na testa
fingiam não querer ver

até o padre corria
com a batina na mão
tropeçando nos degraus
na maior afobação
excomungava aquela cena
e jogava pesadas penas
naquela blasfemação

o delegado com raiva
prender o jegue mandou
acabando para sempre
com aquele explícito amor
intimou também o seu dono
pra lhe explicar sem engano
em que pasto o confinou.

passado já alguns anos
desse feito acontecido
certamente alguém se lembra
desse caso ocorrido
o que Barroso aprontou
e quem dele testemunhou
jamais ficou esquecido

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O Fusca casa, a casa Fusca.





Desde pequeno, o Aloisio
Só vivia a sonhar
De ter um fusca bonito
Pra com ele desfilar
E de ver a mulherada
Só por ele se esganar

O tempo foi transcorrendo
Sem dar fim ao pensamento
E quando ficou rapaz
Abandonou seu jumento
Disparou para São Paulo
Como um pássaro ao vento

Lá arranjou um emprego
De ajudante geral
E com o que dele ganhava
Só podia passar mal
Mas com muita economia
Formou logo um cabedal.

Com o dinheiro adquirido
Comprou o fusca sonhado
Vivia todo poseiro
Bem vestido e perfumado
Só não podia dirigir
Por não ser habilitado.

Alugou uma garagem
Que lhe custava uma grana
E não tendo mais dinheiro
Nem pra comprar uma cama
Dormia dentro do fusca
Já sem emprego e sem fama

Seu pensamento agora
Era voltar pro Ceará
A terra que o pariu
E que jamais devia deixar
Estava mesmo atolado
Sem ter pra quem apelar

Todo bem que possuía
Era apenas um fuscão.
Agora desempregado
Sem ter nem mesmo um tostão.
Fazia do fusca a casa
Fazia da casa o fuscão.

Passava o dia inteiro
Alisando o carrão
Era o bem mais precioso
Que tinha deste então
Mas no fundo de seus bolsos
Não tinha nem um tostão

Certo dia estava ele
Querendo se amostrar
Abriu toda a garagem
Pôs o fusca a funcionar
O rádio cantava alto
Um forrozinho pra animar

Um sujeito ia passando
E lhe acenou com a mão
O abestalhado do Aloisio
Lhe deu toda atenção
E logo entregou o carro
Na mira de um três-oitão

O ladrão saiu contente:
Acelerando; tirando “fina”
Mas só andou poucos metros
Pois não tinha gasolina
E aos gritos do Aloísio
Largou o caro na esquina

O coitado em disparada
Com o coração na mão
Abraçou-se ao seu fusca
Chorando pra multidão
E ao contar toda a história
Ali vendeu o fuscão.

Entrou no primeiro bus
Com destino ao Ceará
Dizendo que em São Paulo
Nunca mais ia pisar
E que o sonho de um fusca
Acabou sem começar.

Voltou pra sua terrinha
Cheio de decepção
Dizendo que nunca mais
Iria ter tentação
Embrenhou-se em sua roça
E foi cuidar da plantação.

Nota:  em 1975  eu  presenciei esse episódio em São Caetano do Sul-SP, do qual  tive a ousadia de transforma-lo num Poema de Cordel.


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6 comentários:

  1. Quanta doideira e este jegue, tinha que namorar
    logo ali?

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  2. Que talento! Vc tem o dom de nos transportar para a dentro da leitura.
    Rita

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  3. Todo homem tem um pouco desse Aloísio,quando compra um carro.
    Que decepção!Que tristeza pra ele.
    Rita Tôrres

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  4. Você é muito bom nas letras. Não sei como você ainda não se tornou um escritor, poeta... famoso! Você escreve divinamente!

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  5. Concordo com esse anônimo, também não entendo como vc não escreve com mais afinco, para se tornar um escritor famoso, pois talento não lhe falta.
    Rita

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  6. Um gesto muito bonito, valeu tanto a pena que até o momento você sente sua falta.
    O cão realmente é um verdadeiro amigo.
    Parabéns pela bela poesia de cordel!

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