MOMENTOS

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As Cerejeiras do Japão


Sou um dos brasileiro que vergonhosamente nunca viu um Pau Brasil (razão do batismo de meu País), o qual foi esquecido por todos e quase que descaradamente exterminado pelo ganancioso vandalismo econômico no transcorrer de séculos, mas que muito admira a beleza exuberante da florada do Sakura, ou “Sakurá” ( como se pronuncia em japonês); ou simplesmente cerejeira, como dizemos por aqui.

                Quando chega o mês de agosto as abelhas abrilhantam com seus zumbidos incessantes a festa das cerejeiras do Parque do Carmo: um dos maiores da cidade de São Paulo, localizado na sua zona leste.
                A revoada de beija-flores e de insetos à procura do néctar das flores rosadas é intermitente e uma sensação de se estar envolvido com a natureza faz com que, todos os anos, este espaço ambiental se torne alvo da visitação pública, aonde os olhos se encantam com a beleza ímpar da florada das cerejeiras, sutilmente transformando em róseo tudo que por ali, antes, era verde.
                O quê deveria ser orgulhosamente chamado de festa do Pau Brasil, chama-se de festa do “Sakurá”, isto em razão dos imigrantes japoneses terem pacientemente transladado oceanos com mudas de cerejeiras do Japão e presenteado o Brasil com sua árvore símbolo nacional, e que, anualmente, se jubilam com orgulho, cânticos, comilanças, danças, ritmos, respeito, alegria e admiração. 

                - É assim que se faz no Japão; é assim que matamos a saudade de lá! – foi o que me disse um velho nissei, que parecia voando na felicidade, e sorria prazeroso ao ver sua neta vestida a rigor e dançando suavemente o Asadoya-Yunta, a dança da celebração do amor, com gestos leves na cadência rítmica da melodia nipônica.
O colorido dos quimonos se misturava alegremente ao movimento sutil da dança típica embalada pela música suave que aquietava a platéia, e todos os olhares se focavam para o deslumbrante espetáculo de som e flores em meio ao cor-de-rosa das cerejeiras do Japão.
E eu, como um simples assistente, mas com uma inquietante dúvida, silenciosamente me questionava:
- Será que os brasileiros emigrados no Japão têm por lá a festa do Pau Brasil?
                 Melhor seria se Pedro Álvares Cabral tivesse batizado esta terra como antes queria: Terra de Santa Cruz, assim, quem sabe?... Esqueceriam nossas florestas e o Pau Brasil estaria a salvo dos assassinos florestais, e eu, assim como os netos e os bisnetos (nisseis e sanseis) dos japoneses fazem, também pudesse festejar alegre e orgulhosamente nossa árvore símbolo nacional, mas, como não a temos, continuarei a festejar o “Sakurá” que agora, também, é brasileiro.




UM DIA DE CÃO

               Retirei um envelope na caixa de correio do meu portão e nele um recado ditatorial assim me determinava: “de acordo com a medição de soleira, o número duzentos e nove desta moradia doravante passa a ser oitocentos e quatorze, conforme dita o Decreto nº tal publicado no Diário Oficial do dia tal, página tal. Caso essa alteração não seja efetuada no prazo de trinta dias, o proprietário deste imóvel estará sujeito a multa de acordo com o parágrafo tal do artigo tal, do referido Decreto”.

               Pasmo, li a dita cuja e me arrepiei, e esmurrando as paredes, resmunguei:
               - Diabos! Certamente perderei dias para acertar meu cadastro. Esses malditos ainda me pagarão nem que seja com o poder do meu sagrado voto!
               Pensei um pouquinho no que havia dito e me contentei com um lânguido sorriso tipo Monalisa, dizendo a mim mesmo: grande porcaria o meu voto. Quem é ele no meio de tantos milhões? Ele não vale nada!
               Refleti um pouco e resolvi agendar determinado dia para enfrentar as turbulentas filas e respeitosamente acatar aos ditames do Decreto de nº tal. Teria que, em apenas um dia, alterar meu endereço no emprego, em bancos e nas empresas de água, luz, telefone, gás e moradia. Seria aquele o dia mais infeliz da minha vida?  Antecipadamente me vi em posição ereta; faminto, sedento e empurrado nas filas. Tudo por culpa de um sujeitinho que havia recebido o meu disputado voto e que obstinadamente determinava onde alguém me encontraria no regaço do meu lar.
               Saí cedinho achando que seria o primeiro da fila no banco: inditoso engano: ela se estendia na calçada por dezenas de metros. 



                      Acho que esse povo dormiu aqui – pensei.
                Por fim, entrei.
               Peguei a ficha cento e trinta e seis, que era o equivalente a quarenta minutos de espera a me mortificar de ansiedade e medo.
               Os ponteiros do relógio moviam desesperados em direção ao meio-dia e eu me agoniava dizendo pra mim mesmo: o dia não vai dar, só um dia não vai dar.
               Após ser atendido pelo bancário sai a passos largos em direção ao meu segundo agendamento do dia: conta d’água, e nela outra fila entristecida se contorcia nuns degraus de escadaria e depois se alongava num corredor estreito e tortuoso. Peguei a ficha oitocentos e setenta e fiquei de olhos arregalados nos números luminosos do painel de chamada para ver quem seria o próximo da multidão. Chamaram o seiscentos e noventa. Fiz uma rápida conta “de cabeça” para certificar-me de quantos estavam na minha frente, e entrei em desespero: eram apenas cento e oitenta e um.
               Diabos! Malditos! – novamente xinguei prazerosamente os políticos.
               Olhei para traz e vi que a fila já havia duplicado e pus-me a zombar do último dela, murmurando: - aquele cara ta fu...... só amanhã ele sairá daqui! Sorri meio aliviando; me contentando com o descaso do qual eu ali fazia parte.
               A fome começou a barulhar nas vísceras. Pela décima vez olhei o relógio: duas e meia. Caramba, hoje não vai dar! Terei que faltar outro dia no trabalho – pensei desiludido.
               Inesperadamente uma morena desgraciosa de corpo, cara  e cabelo; com uns óculos tipo fundos de garrafa agarrado em suas orelhas, põe-se de pé no meio do corredor e gritou histérica:
               - Quem não vai querer segunda via de conta d`água que entre numa fila a partir daqui!
               Foi um corre-corre. Um desespero assustador e, aos esbarrões, fui um dos primeiro a chegar. Quase me derrubaram.
               - O senhor, o que quer? – pensei em responder-lhe: jogar bilhar.
               - Alterar cadastro! – falei mansamente.
               - Cadastro? – me interrogou arrumando os óculos e acrescentou: sinto muito, não é aqui! Vá para a outra fila!
               - Eu lá estava! – disse-lhe enérgico.
               - Pode voltar!
               - Lá não é somente para quem quer segundas vias? Não foi assim que você disse?
               - Não interessa, volte! – ela berrava parecendo um coroné de outrora.
               Nesse ínterim, alguém da fila que eu havia saído gritou:
               - Pra cá ninguém volta! Aqui não tem palhaço! Ou vai me encarar?
               Voltei a cabeça e me deparei com o tal insultor que já era o primeiro da fila dos debandados. Era um mulato com uma imensa tatuagem de cara de leão no braço direito. Ele se parecia um halterofilista, pois tinha mais músculo no corpo do que nas vitrines de açougue. Seu porte físico intimidava qualquer um.
               Fiquei na corda-bamba, me questionando: devo encara-lo?
               Deixei a adrenalina baixar um pouco e disse-lhe pausadamente:
               - Tenha consciência, senhor! Tenha paciência! Também preciso ser atendido.
               - Não é problema meu! – Retrucou-me já de punho cerrado.
              - Algum problema Valdira? – indagou o chefe do setor que misteriosamente apareceu no meio do tumulto.
               Pensei: chegou minha salvação.
               E Valdira, apontando um dedo na direção do mulato, assim disse-lhe:
               - Doutor Olavo, aquele moço não deixa esse senhor voltar para a fila de cadastros.
               - Senhor, calma! Eu te atenderei! – disse-me o chefe.
               Sai feliz com o atendimento do chefe, sem, contudo, deixar de encarar o desdém que o tatuado demonstrava.
               A tarde caia.
               Esbravejando olhei o relógio e disse a mim mesmo: eu não falei? Somente um dia não deu!
               Precisei de mais dois dias para atender às ordens do envelope da minha caixa postal.
               Ah, se eu morasse num barraco teria gratuitamente luz, água, isenção do IPTU e nada disso me atormentaria.

Um comentário:

  1. Realmente não foi dado o devido valor para essa planta, mas quem sabe se alguém não vendeu uma muda, e ela seja cultuada lá no Japão.
    Rita

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